Certificado

Postmortem

Eu creio que privilégio é feito para que, você como privilegiado, use de seus recursos para garantir que outros tenham o mesmo privilégio que você tem. É assim que a responsabilidade social começa na minha opinião. Então assim que o isolamento social começou, fiquei espantado com as projeções do aumento do nível de desigualdade social, o qual já é grande no Brasil. Mas ainda mais incomodado (e de certa forma até grato pelos meus pais) fiquei com o fato de que nada tinha mudado para mim além do fato de ter que ficar em casa. Não perdi trabalho, não gastei mais com aluguel, não tive redução de salário. Eu senti que era imperativo que eu ajudasse da forma como conseguisse a atenuar o impacto que a pandemia traria na vida de pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Partindo dessa responsabilidade, eu participei durante seis meses como mentor de redação em um projeto de mentoria de estudantes de classe baixa que estavam sem aulas. Minha aluna era uma mulher de 24 anos que morava no ABC paulista em São Paulo. Ela estudou a vida inteira em escola pública e trabalhava ao mesmo tempo, se formou em uma área que não tinha interesse em seguir carreira, tinha acabado de perder o emprego e o acesso ao tratamento psicológico, estava morando com a tia, não tinha uma relação boa com a mãe e a irmã estava trabalhando na linha de frente de hospitais e tinha contraído COVID. Definitivamente uma situação difícil e é o que provavelmente a maioria da população brasileira está experienciando agora.

Nós nos encontrávamos toda semana na terça para conversar por vídeo para que eu a auxiliasse a escrever melhor para a redação do ENEM. Eu em Floripa e ela em São Paulo. Uma situação que só poderia ser possível devido ao acesso à internet e a celulares. Esse é um dos melhores exemplos como a tecnologia, quando usada propriamente, pode diminuir desigualdades na educação, a qual é a base de toda sociedade. No final da mentoria nós conseguimos aumentar a pontuação dela, com técnicas que para mim eram tão simples e automáticas pois eu tinha estudado em um dos melhores colégios particulares de brasília (minha cidade natal) e para ela eram completamente aliens pois havia uma grande carência na sua formação.

Esse final pode parecer feliz e um caso de sucesso, porém uma semana depois do fim do programa ela compartilhou comigo a notícia que estava grávida e teria que abandonar os estudos para trabalhar e cuidar da criança como uma mãe solteira.

Minha postura com esse papel de mentor foi mais assertivo, porém não sei se é a melhor das estratégias. Eu estava claramente e deliberadamente alimentando ela com conselhos batizados em filosofias que eu acreditava. Sinceramente não acho que os conselhos de cunho existencial e estoicos me faziam sentir autoritário, mas o que me fazia sentir culpado era só que não era flexível com a modelo dos encontros que tínhamos, o que ocasionou que ela parasse de frequentar as aulas que tinha para ela ao final. A má gestão de tempo dela também não ajudava. É engraçado estar nessa posição de professor, me faz ser mais consciente como um aluno.

A vida em sociedade não é fácil, é injusta e depressiva muitas vezes, mas só pelo fato de eu ter conseguido ajudar uma pessoa a melhorar algum aspecto da vida dela já me sinto feliz, porém desconfortável ainda. Há muito para se resolver como essa disciplina deixou claro, e talvez compaixão, empatia e altruísmo não resolvam todos os problemas, mas definitivamente funcionam como o óleo que lubrifica a engrenagem social para que ela seja menos dura com suas peças.